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CONECTADOS II

Com freqüência, encontro interlocutores que ainda demonstram certa perplexidade diante do fato de que, nesta época tecnológica e eminentemente áudio-visual, estejamos recriando a prática da narração, popularmente chamada “contação” de histórias. Sinto que isto corresponde a uma espécie de “necessidade”, algo intrinsecamente humano, e portanto, algo que somos impelidos a realizar. Afinal, as narrativas tem a função de nos oferecer sentido e significado (ver post de texto anterior), mas o que nos faz sentir esta necessidade de compartilha-las?

Retomando “A louca da casa” (primeiro post deste blog) “sem o entendimento de nós mesmos e dos outros, sem a empatia que nos une aos outros, não pode existir nenhuma sabedoria, nenhuma beleza”. Rosa Montero chega a esta afirmação depois de narrar a terrível história de um linguista judeu que sobreviveu às perseguições e aos campos de extermínio nazistas, e logo após a guerra, publicou uma obra intitulada “A língua do Terceiro Reich”. Victor Klemperer (este era seu nome) queria “uma explicação para o inexplicável”, usando para isto seu conhecimento como linguista, e tendo como fio condutor desta análise a narração de seu próprio sofrimento. “Sem escândalo, sem vitimação, num sóbrio, depurado relato”.

Encontrei em romance de Jonathan Littel, ”As Benevolentes”, narrativa ainda mais contundente, no sentido que nos aponta a história de Klemperer (e não apenas por estar ambientada no nazismo). Nesta obra o autor narra, em primeira pessoa, as memórias e reflexões de um oficial de alto escalão das SS. Ao longo de mais de 900 páginas, discorre as suas memórias como agente do horror. Em certa altura (pg. 142) relata seu testemunho e participação das primeiras tentativas de extermínio dos judeus. Durante dias, do amanhecer ao por do sol, viu e comandou a execução em massa de centenas, milhares de pessoas, que marchavam do campo de concentração até a proximidade de imensas valas, à beira das quais eram fuzilados.

“Agora julgava compreender as reações dos homens e dos oficiais durante as execuções. Se sofriam (...), não era somente em virtude do cheiro e da visão do sangue, mas também em virtude do terror e da dor moral dos condenados; da mesma forma em geral, os que fuzilávamos sofriam mais com a morte, diante dos seus olhos, daqueles a quem amavam, mulheres, pais e filhos queridos, do que com a própria morte, que recebiam no fim como uma libertação. Em muitos casos, eu arriscaria dizer, o que eu tomava por sadismo gratuito, a brutalidade inaudita com que alguns homens tratavam os condenados antes de executá-los, não passava do efeito da piedade monstruosa que sentiam e que, incapaz de se exprimir de outra forma, transformava-se em raiva, mas uma raiva impotente, sem objeto, devendo portanto quase inevitavelmente voltar-se contra aqueles que eram sua causa primeira. Se os terríveis massacres do Leste provam alguma coisa, é de fato, paradoxalmente, a terrível e inalterável solidariedade humana. Por mais brutalizados e acostumados que estivesse, nenhum de nossos homens conseguia matar uma mulher judia sem pensar em sua mulher, ou matar uma criança sem ver seus próprios filhos à sua frente diante do fosso. Suas reações, sua violência, seu alcoolismo, as depressões nervosas, os suicídios, minha própria tristeza, tudo isto demonstrava que o outro existe, existe como outro, como humano, e que nenhuma vontade, nenhuma ideologia, nenhuma montanha de estupidez e álcool é capaz de romper este laço sutil mas indestrutível.”

Littell encerra esta passagem com uma frase contundente: “Isto é um fato, não uma opinião.” E a seguir desenvolve, convincentemente, o argumento que a evolução ao método das câmaras de gás não se deveu apenas a uma maior eficácia no processo de extermínio, mas que os “novos métodos” proporcionavam um maior distanciamento dos soldados com a morte, e com isto, pretendia-se diminuir os sintomas tão nefastos para o moral das tropas.É também tristemente um fato que o sentimento de solidariedade não foi capaz de impedir o horror, mas aqui deveríamos considerar a força da coerção cultural, do humano enquanto parte de um coletivo, de uma meta-narrativa que transforma uma pessoa comum em carrasco.

Sem contarmos as seqüelas dos que perpetraram o horror descritas no relato acima, foram muitos os relatos daqueles que resistiram, mesmo enfrentando o mesmo destino daqueles a quem pretendiam defender, neste e noutros momentos terríveis da história humana. Se a explicação não está no poder de coerção de uma conjuntura cultural, talvez porque, para estes, a solidariedade humana seja um imperativo moral.Para Afonso Berardinelli, nenhum comportamento moral é concebível sem a capacidade de identificar-se no outro, de imaginar-se numa condição diversa da sua. “Um adulto que se imagina criança, o jovem que se imagina velho, o forte que se imagina fraco...” e poderíamos seguir colocando “oposições”. A citação vem do livro de Franco Lorenzoni, “Cosi liberi mai – La proposta del cerchio narrativo nella scuola di base come scoperta di sé e apertura agli altri”, que aponta a narração de histórias como elemento fundamental na construção desta identificação com o outro. Quando escutamos uma história, de forma similar com a leitura, nos “transportamos” para a história que se desenvolve dentro de nós, pela imaginação e vivemos as situações narradas, nos identificamos com os personagens.

É certo que podemos estabelecer conexões importantes através dos meios eletrônicos, e ainda não dimensionamos adequadamente estas possibilidades, que a cada dia, se renovam. Certamente, podemos compartilhar histórias e estabelecer vínculos de forma virtual, mas as eloqüentes imagens do post “Conectados I” neste blog nos alertam para seus limites. Laura Simms, em artigo publicado na página “textos” deste site, nos esclarece acerca da escuta de histórias como uma vivência, na qual a palavra é potencializada pela presença do narrador.Ao relatar os saraus de histórias, por exemplo, que promovemos na biblioteca Barca dos Livros há sete anos, com periodicidade mensal (no último sábado do mês) para público adulto, algumas vezes ainda me deparo com certa incredulidade, expressa quando me perguntam “se tem público para isto”. E é grande o número de pessoas que freqüenta estas sessões, começando sua noite de sábado ouvindo histórias. Quando estou contando histórias para públicos mistos, onde estão presentes crianças acompanhadas dos pais, vejo adultos com a mesma cara de encantamento que observo nas crianças. E a reação também é similar. Assim como seus filhos, que vem dar beijos e abraços como se não fossemos mais estranhos, recebo dos adultos cumprimentos acompanhados de uma repentina afetividade.


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