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Linguagens

No “Boca do Céu”, festival internacional de contadores de histórias que acontece a cada dois anos em São Paulo, estava na platéia de uma exposição de prática de dois grandes contadores de histórias que se utilizam dos seus talentos artísticos em outras área para narrar: Paulo Freire e Paulo Federal. O primeiro, músico. Um verdadeiro “virtuose” da viola brasileira. O segundo, clown. E dos melhores que já vi.

Paulo Freire contou, entre outros causos, que estava no sertão do Urucuia com seu mestre violeiro, Seu Manelim, e falava da sua dificuldade para aprender o “ponteado” da viola (técnica que usa apenas dois dedos para tocar), pois vinha de uma formação clássica no violão. Certa noite, pegou o violão e começou a tocar. Seu Manelim parou diante dele e ficou olhando. “Paulo, você toca com os cinco dedos, é?” Paulo Freire confirmou, mas disse que estava querendo tocar como os violeiros, com os dois dedos apenas. “Aprende o ponteado, mas continua tocando com os cinco dedos também.”

A seguir, Paulo Federal tomou a palavra e, conversando com o público sobre seu trabalho, começou a se transformar, culminando com o indefectível nariz, numa performance fantástica pela simplicidade e expressividade. Então disse que ainda agregava muito para contar e que não conseguia chegar à simplicidade do “contador de histórias”.

Foi a deixa para que se iniciasse, por parte de algumas pessoas da platéia, uma discussão acerca dos limites entre teatro e “contação de histórias”. Meu desconforto era crescente, na medida em que alguns discursos desfilavam argumentos em busca de uma pretensa “pureza” artística. Como contador de histórias que se utiliza de uma linguagem cênica “minimalista”, sem cenários ou qualquer tipo de caracterização, focado na palavra a partir da perspectiva da oralidade, poderia reivindicar naquela discussão o título de “verdadeiro contador de histórias”. Mas estava diante de dois dos artistas que mais admiro, e havia passado dias de intenso prazer pela fruição de outros tantos talentos, como o grupo “Os Tapetes Contadores de Histórias”, José Mauro Brant e tantos outros que traziam para a narração elementos da música, do teatro, das artes plásticas...

Lembrei das palavras de Estrella Ortiz[1], para quem a fronteira entre teatro e narração é ambígua, e alerta que “uma discussão sobre os limites entre interpretar e narrar seria totalmente estéril: num nível profundo, o ator sempre conta o que quer que seja, e o narrador sempre interpreta, pois revive algo que não acontece naquele momento,” Além disso, penso que a narração é uma arte cênica e, portanto, incorpora elementos teatrais.

Conforme Regina Machado, realizadora do Boca do Céu, “antes de querer saber como contar, é preciso compreender que as técnicas resultam de um processo de elaboração da presença, que começa com a pergunta: por que contar.”[2] Acredito que, como em qualquer forma de manifestação artística, o contador constrói esta presença a partir de uma necessidade em expressar o que a história lhe traz, através de seus recursos expressivos.

Não foram estas citações que trouxe na minha intervenção, quando afinal me foi dada a palavra. Lembrei da história de Paulo Freire com seu mestre. E me coloquei como alguém que usa apenas os “dois dedos para tocar”. Mas aqueles que sabem usar “outros dedos”, que continuem usando, se o que estiver em questão for uma profunda necessidade de compartilhar sentido e significado.

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[1] “Ler, interpretar, recitar...” em Baús e Chaves da narração de histórias, Gilka Girardello (org), SESC-SC, Fpolis, 2008 (pág.104).

[2] “Acordais – fundamentos teórico poéticos da arte de contar histórias” – Regina Machado, DCL, São Paulo, 2004 (pá. 69, grifo meu).


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